Depois me perguntam porque as histórias de vida de pessoas idosas me atraem.
Ensino português a essa minha aprendente há 8 meses. Na semana passada, ela me disse que tinha caído e fraturado o ombro na viagem que fez ao Brasil. Me assustei. Senti sua dor e imaginei toda a cena, já que conheço a sua realidade. Ela perdeu a visão de um olho e agora progressivamente está perdendo a outra. Um dos seus braços tem movimento involuntário. Sente muitas dores à noite porque teve um câncer complicado e então não dorme bem. Ela, como ex bailarina, artista e psicanalista, tem uma bonita e boa consciência do seu corpo e da sua mente, e creio que é essa a ferramenta que a faz ver além do olhar. Estou certa de que os olhos delas são outros.
Ontem tivemos aula. Ela me liga cedo para organizar o horário. No telefone, trocando o francês (um dos idiomas que ela domina bem) pelo português, deixa um recado no meu celular:
– Hoje nos encontramos às 14:15. Podemos ter aula em um café? Quero respirar ar puro, quero sair de casa. Estou feliz em ter aula hoje!
Fomos ao café no horário determinado. Carreguei suas bolsas -uma delas com o livro que estamos construindo juntas de acordo com as nossas curiosidades e dúvidas, escrito com uma fonte tamanho 72 e bem colorido para poder chamar atenção da sua pouca visão. No caminho, lhe pergunto como é se arrumar sozinha com um braço inutilizado e como ela consegue ficar tão linda (tinha maquilagem, seus cabelos brancos perfeitos, roupa bem limpa, um perfume gostoso e um casaquinho que cobria seu ombro). Treinando o português e suas histórias de vida, me responde:
– Ah, professora! Passo a mão no cabelo assim e fica lindo – me mostra que a mão «sana» com o movimento involuntário assanha o cabelo. Tenho uma maquilagem líquida que ajuda! Consigo me higienizar (usou esse verbo). Dá certo! Estou bem? Quero sempre estar bem!
Durante a aula me conta que se separou do marido. (Se pudesse usar a carinha do whatsapp aqui, usaria aquela com os olhos bem abertos e assustados). Mais de 30 anos de relação! Me conta com um português perfeito e eu a escuto com o coração apertado, completamente afetada pela história que ela me contava.
– Pedi para ele ir embora, para levar tudo! Deixou duas blusas apenas. Blusas lindas, mas como ele estava mais magro já não entravam mais. São muitas as razoes. São muitos os … como digo em português? Espera que eu sei! Deixa eu pensar… Detalhes! Detalhes! Mas eu não quero falar sobre isso… gosto do português porque é uma língua leve, feliz, me faz lembrar dos Brasileiros… sempre leves, sempre felizes. Uma língua leve!
Sozinha, sem filhos, com um braço imobilizado, sem empregados ou cuidadores, minha aprendente, ou melhor, minha professora, me mostra que nunca é tarde para recomeçar ou para se reinventar. Aos 85 anos, ela assanha os cabelos e a vida e sai para sua aula de português.
Um idioma leve para uma vida que às vezes parece pesada.