Precisei experienciar um mês longe do meu país. Precisei pisar em terra alheia. Preparei-me para a viagem, necessitava descobrir os segredos da língua castelhana; uma língua tão semelhante e tão distinta da nossa. Carreguei somente a minha bagagem de experiências de vida. Não fui tão longe, parti para Argentina.
Trinta dias de descobertas. Descobertas da cultura do outro, e assim a descoberta da minha própria cultura. Impressionante como uma viagem nos revela o quanto somos, parece que ela tem a capacidade de remexer na quantidade de coisas que carregamos em nossas bagagens. A sensação é que quanto mais dias longe de casa, mais nos aproximamos do que somos. A razão, creio eu, para tantas descobertas é a possibilidade de experimentar o Kairós; aquele tempo incontável, tempo experienciado, tempo refletido. O tempo das nossas correrias, dos horários a cumprir, o piloto automático ligado a partir da abertura dos olhos logo ao despertar, esse tempo nas viagens é esquecido. Foi ele, exatamente ele, que eu fiz questão de deixar fora da minha bagagem em busca de uma viagem além do olhar. O olhar que eu buscava era o interior, era o poder experienciar o que meus aprendentes sentem em salas de aula quando eu os ensino. Como seria ter que me comunicar através de uma língua que eu ainda não dominava?
Brinquei de me conhecer. Resultado? Inúmeras aprendizagens significativas, estas que ficam nas nossas bagagens até morrer. Escolhi uma cidade encantadora, que valoriza o velho, mas que abre espaço para o novo, que baila pelas ruas de calçamento de pedras, que disponibiliza seus verdes para um passeio a dois de mãos dadas, que presenteia as crianças com praças e parques tranquilos, que permite os senhorezinhos do tempo, (aqueles de cabelos brancos e que andam com dificuldades meio que caindo para um lado), passear pelas calçadas às 3 da manhã. Essas eram algumas das cenas da minha janela na Avenida Callao. Cenas que me davam liberdade e me convidavam a caminhar sem medo, e assim eu ia descobrindo os aires bons de Buenos Aires. E a Florida me ensinava que no Kairós deveríamos não ter carros, Palermo e Recoleta ensinavam a importância de se usar realmente uma cidade, Puerto Madeiro trazia ensinamentos de magia, do novo, da cultura gastronômica, San Telmo trazia o valor do velho, da antiguidade, da boemia, das pedras de calçamento, La Boca o bailar onde e quando o tempo permitir, mostrando o quanto na vida devemos ter cores. Sempre gostei de cores. E quantos nasceres do sol da minha janela vi e quantas noites eu caminhei pelas ruas! Ah, o Congresso… sensação única de ver tamanha arquitetura! A pausa para o chá, os alfajores comprados nas caminhadas, os sorvetes tão finos, o doce de leite que parecia desmanchar na boca, um país tão perto do nosso e uma cultura tão diferenciada. A Casa Rosada que guarda tantos problemas políticos ali dentro de suas paredes, parecia ser maquiada de rouge por tanto que brilhava aos meus olhos. As livrarias nas esquinas de cada rua sempre me convidavam a entrar. Eram livros de 1910, livros de fotografias, livros de Histórias, de estórias, nos quais ao passar as suas páginas eu era capaz de ver a minha própria história de Vida sendo mesclada e completa a partir das possibilidades que eu me permitia experienciar.
E assim eu caminhava pelos meus trinta dias. O bloqueio do idioma me fez descobrir através do meu silêncio a importância de observar e a arte do ouvir. Ouvi barulhos, ruídos, eu me permitia buscar os sons; sons estes que o no tempo Chronos não me deixava apreciar. Eu observei comportamentos. Chegava a sorrir de olhares, de risos, de roupas engraçadas, de cortes de cabelos diferenciados, da forma do andar, de um beijo, dos amigos homens se beijando ao se encontrar, da forma que eles também me olhavam. Brinquei com o tempo. Os bons aires começavam ao longo dos dias a fazer parte de mim. Percebi que muitas vezes silenciar é melhor do que falar. Percebi que escutar o outro é escutar a mim mesma. Tirei inúmeras fotos com a alma.
No entanto chegou a hora da troca. Em tudo na vida há trocas e em um certo dia o meu silêncio foi sendo quebrado. Eu necessitei usar o tipo de vínculo que me une aos outros: a língua. Uma relação de reflexividade sobre a minha vida e a do outro, sobre a minha cultura e a do outro; um vínculo essencial, uma troca entre almas. Percebi então que nos encontros eu precisava me apresentar e o me apresentar cabia mostrar e abrir a minha bagagem de experiências que eu tinha levado. Ninguém viaja além do olhar se não compartilhar também o que somos e o que temos em nossas malas. Acredito que é nessa troca que criamos o sentido a tudo que vemos e a tudo que experienciamos. Eu me percebi então no lugar dos meus aprendentes que tanto buscam nas minhas aulas de inglês a capacidade de se comunicar. Percebia que a comunicação ia muito além de perguntar o preço de um souvenir, onde se pega um táxi ou responder de onde eu vim.
Para viajar além do olhar, eu necessitei fazer uso de narrativas para que dessem forma ao vivido. Tive que respirar mais fundo quando o meu vocabulário ainda pobre não conseguia sequer mostrar as inúmeras coisinhas que eu tinha levado dentro da minha mala. E como deixar um pouco ou muito de mim se não havia vocabulário para isso? Levei mais do que deixei. Podia ter deixado tanto quanto levei. Porém descobri-me mais humana a cada nova expressão usada corretamente do castelhano, a cada erro que cometi, a cada troca que eu consegui, a cada coisinha mostrada da minha mala. Ah, sim… senti-me mais humana, afinal não são as nossas capacidades de aprendizagem e de comunicação que nos fazem humanos?
Aprendi que viajar além do olhar é trazer nas bagagens da vida momentos de aprendizagens significativas, é conseguir tirar fotos que nunca serão apagadas através do tempo, é trazer souvenir para a alma, é deixar também um muito ou um pouco do que somos, é um voltar para casa, assim, renovada. Aprendi que o número de mundos que possuímos depende do número de idiomas que falamos.
Profa. Dra. Danise Grangeiro
*publicado no livro «Viagens Além do Olhar» escrito por Ana D´Aurea Chaves e Rita Cruz